quinta-feira, 9 de julho de 2009

Tão longe, tão perto, tão nossos

Como até mesmo os entrevistados pela pessoa que escreveu a reportagem publicada hoje em A Tribuna sobre a lei do silêncio imposta nos morros de Santos lhe recomendaram que nem sequer assinasse a matéria, não serei eu quem a identificará. Digo apenas que ela merece respeito e admiração, ao contrário dos que, por mais de um século, contribuíram para transformar a cidade em duas — uma orla com padrões de Primeiro Mundo e problemas sociais de Terceiro Mundo na Zona Noroeste e nos morros.


Resolvi me manifestar porque, também enquanto repórter e cidadão que acompanha e gosta deste tema, o urbanismo, não aguento mais ouvir esta ladainha de gestores públicos: a de que os pobres estão em territórios distantes dos ricos não porque os governos sejam omissos, mas porque “não se pode coibir a lei de mercado”. Essa lei sem papel pela qual, quando um rico quer a praia, valorizam-se os terrenos da praia. E as áreas intermediárias também, para impedir que os mais pobres se estabeleçam nelas.


É um argumento preguiçoso de quem tem interesse em ganhar dinheiro com facilidade. Mais caro o terreno, maior a incidência de IPTU sobre ele. E não há qualquer garantia de que esse imposto predial fácil ajudará a melhorar os níveis das áreas pobres que ainda restam na cidade ou das que estão se multiplicando, como as “vilas” das quais eu nunca tinha ouvido falar na vida e que, dizem, estão lá há pelo menos uma década. Mas o governo sabia delas e, por deixá-las crescer, foi omisso. E o imposto que paguei?


Um dos leitores que comentaram a reportagem pela Internet, na seção Papo com Editores, identificado como Ibrahim Tauil, fez uma observação pertinente a respeito do que trata este comentário: “Para evitar o surgimento de guetos, o governo inglês obriga a construção de um percentual de moradias sociais no mesmo espaço onde são construídas moradias de luxo. Não sei se a solução é essa. Só sei que é obrigação dos governos resolver problemas, conciliar interesses”.


Também desconheço a saída, mas acho que seria bem menos pior se todos, pobres, remediados e ricos, convivêssemos em espaços semelhantes e aprendêssemos a entender os modos de vida uns dos outros. Sobretudo, os ricos, que compreenderiam na prática as consequências da vida para quem tem pouco e, quem sabe, se esforçariam para melhorar as condições de vida desses desfavorecidos. Nem que fosse para tornar sua presença menos incômoda aos que têm horror à miséria alheia.


É uma utopia para o modelo santista, segregador, construído deste jeito a partir do fim do século 19. Foi naquela época que Santos começou a abandonar o aspecto de quando era uma colônia, com residências e estabelecimentos somente no Centro e em bairros próximos, e a se expandir para outras áreas. A evolução do porto, a expansão das linhas de bonde, os negócios com café foram tirando pessoas da região central e levando os mais abastados a construir chácaras, casarões e, até hoje, edifícios defronte ao mar.


Não sou eu quem diz isso. Para provar, destaco dois trechos de um livro que li no mês passado (Os Planos da Cidade: as Políticas de Intervenção Urbana em Santos), escrito pelo arquiteto, urbanista e professor universitário Sidney Piochi Bernardini, que se dedicou ao estudo da ocupação da cidade no período de 1892 a 1910:


“A cidade de Santos foi uma das primeiras cidades brasileiras a ter um plano urbanístico de conjunto, desenhado para permitir a expansão de seu núcleo colonial. O esforço em estabelecer a reforma e a expansão da cidade advinha do insistente desejo de criar um novo sítio urbano e uma nova possibilidade de ocupação e exploração do território, condicionando esta busca a um tipo de desenvolvimento que privilegiasse a consolidação de um modo de vida burguês”.


“Se antes a demarcação social clara entre senhores e escravos permitia um intercâmbio de relações entre as esferas pública e privada, embora com delimitações precisas: casa e rua; na cidade moderna era necessário excluir do espaço público os ex-escravos, agora livres, mas diferentes na condição econômica, controlando e segregando os espaços por eles ocupados, zonificando socialmente a cidade e promovendo a circulação entre os diversos espaços”.


Essa divisão causa desgraças em Santos faz muito tempo. Os deslizamentos do Monte Serrat, em 1928 e 1956, foram exemplos de consequências da ocupação desordenada.


Eu só estou aqui porque a casa onde viviam meus trisavós maternos, imigrantes portugueses, e seus 11 filhos não desabou. Soube disso numa descoberta recente: a de que, em 10 de março de 1928, dia do incidente, meu trisavô deu entrevista para A Tribuna. Uma fenda se abriu no solo, debaixo de sua casa, e eles se mudaram para outro ponto do morro (como ele cuidava da casa de máquinas dos bondes funiculares, sua nova moradia passou a ser a última antes do casarão que abrigava o cassino).


O Monte Serrat daquele tempo era um núcleo familiar, talvez pela religiosidade e pelas dificuldades comuns a quase todos. Hoje, segundo consta na reportagem, figura entre os morros mais perigosos de Santos. Mesmo estando a cerca de meio quilômetro da Prefeitura.


* * * * * * * * * *


Ainda falando em espaços urbanos, é uma enorme bobagem a votação para se mudar o nome da Encruzilhada. O problema não está nos nomes que damos às coisas. Eu não seria um bom profissional se, simplesmente, adotasse o nome de Alberto Dines, Mino Carta ou Ricardo Kotscho. Sem esforço de minha parte, prejudicaria a memória deles.


Portanto, se querem reverenciar João Otávio dos Santos (Vila Otávio era a denominação mais cotada para substituir a atual), que ajudem a cuidar direito do colégio Escolástica Rosa, na Aparecida — prédio que esse homem deixou em testamento ao Poder Público para que houvesse ali, sempre, uma escola formadora de homens e mulheres para a vida. E para que, um dia, não tivessem de se autoexilar da parte bem estruturada da cidade.

6 comentários:

Blog do NAKA disse...

Concordo contigo Rafaééélll rs
Esse negócio de mudar de nome tá parecendo coisa política...
Não vamos meter o bairro em uma encruzilhada, se é que você me entende?

Abraço!!!

Nando disse...

A insegurança, nos morros ou ao nível do mar, o “mercado”, as causas nobres que abraçamos, como mudar o nome de um bairro, são reflexo de nossa incapacidade, de nossa imbecilidade enquanto povo. Tenho enorme dificuldade para visualizar isto aqui como 'Barcelona Brasileira” ou “Cidade Vermelha”, mesmo que isso tenha ocorrido há 40, 50 anos. Na minha cabeça, seremos sempre a Sucupira de Odorico Paraguassú...

Unknown disse...

Rafael,

faça-me um favor: nunca se cale.

Abraço.

Tadeu Ferreira Jr. disse...

É, Motta, oportuno falar da segregação que a sociedade impõe aos menos favorecidos. Tenho um amigo que reside no Saboó e com com proriedade critica que ele mora em Santos, mas "Santos mesmo" é a região da orla. Há santistas que pensam que em Santos não há favelas! E que viver em morro é desfrutar da estrutura e belas paisagens do Nova Cintra. Santos é, apenas, uma pequena amostra do Brasil, onde é mais rentável aos nossos governantes manter pequenas parcelas de pessoas espremidas em guetos, quando na verdade há condições de desenvolver a cidade como um todo, basta ter força de vontade e menos vontade de fazer politicagem, apenas.

Carriço disse...

Rafael,
Li com muita atenção a matéria da Andréia, sobre os morros. É um alerta geral. Fiquei espantado, porém, ao ler matéria no dia 10, na qual o prefeito afirma que "não há diferença alguma entre a cidade que se estabelece ao nível do mar e a constituída sobre os morros". Definitivamente não vivemos na mesma cidade.
Enquanto os morros e toda a periferia (dentro e fora do município) enfrentam a vilência cotidiana do tráfico, risco ambiental, insalubridade, déficit de serviços e outras mazelas, 7 mil pessoas se mobilizam pra mudar o nome de um bairro (ignorância e preconceito são irmãos gemeos) e outras tantas pra levar seus totós pra passear na orla. Não é cãominhada é cãolamidade pública.
É uma sociedade doente essa nossa.

Ibrahim Tauil disse...

Mais importante do que alterar o nome de um bairro seria fortalecer a identidade dos bairros. Refiro-me aos bairros da Zona Noroeste e dos Morros. Para começar, sugiro a revogação das leis que incluiram aquelas regiões no Calendário Oficial da Cidade. A seguir, acabar com o ridículo aniversário da Zona Noroeste e comemorar os aniversários dos bairros de ambas as regiões. Até por que não se ouve falar em aniversário da Zona Leste. Nesta região, quem faz aniversário são os bairros.
Convenhamos, a data comemorativa já seria um motivo para os moradores discutirem assuntos afins. Exercício de cidadania, fortalecimento da identidade pessoal. Assuntos, por exemplo, como a autorização para o funcionamento de empresas de transporte e pátios de conteiners na Av. Nossa Sra. de Fátima, a mais movimentada da baixada e sem vias paralelas; a transferência do Sambódromo do bairro do Gonzaga, na Zona Leste, para o bairro ???, na Zona Noroeste; a transferência do IML para o bairro Chico de Paula ou Saboó e por aí vai. Em outras épocas teriam sido discutidas as questões do lixão na Alemoa, do Matadouro, dos Cemitérios, etc...etc...
Manter tudo num pacote fica mais fácil ....levar