domingo, 9 de dezembro de 2012

Uma noção da realidade

Há alguns anos, numa das muitas conversas que tivemos após o expediente, o colega Luiz Fernando Yamashiro me disse que nós jornalistas devemos ganhar pouco, mesmo: é para não perder o senso da realidade.

Claro que os salários da categoria beiram o sadismo, mas não é disto que se trata. Lembrei daquela frase por causa de minha irmã, finalmente na casa de minha mãe, recuperando-se de uma fratura exposta no pé esquerdo.

Ela precisou de uma cirurgia, feita num hospital particular de Santos, onde foi muito bem assistida. O problema foi o atendimento inicial, cometido pela rede municipal de saúde de São Vicente. Tivesse ela de passar o tempo todo no serviço público dessa cidade, Deus nos livre do que poderia ter sido.

Minha irmã mora em São Vicente e, ali, é profissional liberal -- duplamente pagadora de impostos na cidade. Enquanto mostrava um trabalho para um cliente, tropeçou e caiu sobre a própria perna. Ao ver o próprio ferimento, desmaiou com o susto.

Meu cunhado chamou uma ambulância. Foi a segunda parte do sofrimento. A "equipe" era composta pelo motorista e por uma moça incapazes de, sozinhos, levantar minha irmã do chão, pô-la na maca e levá-la à ambulância, vazia de equipamentos. Chegaram a sugerir que meu cunhado a pusesse no próprio carro e a transportasse a um hospital.

No fim, conseguiram colocá-la na ambulância. Conduziram minha irmã ao Crei (Centro de Referência em Emergência e Internação). Ali, ficou em cima de um leito, num corredor, debaixo de um aparelho de ar condicionado, sem cobertor, remédios, medicação adequada nem direito a acompanhante.

Foram duas horas e meia de uma dor que minha irmã não consegue descrever e se agravou com o abandono a que ficou largada, enquanto o ferimento causado pela fratura (e com o rompimento de uma veia, como se constataria mais tarde) permanecia exposto ao risco de infecção hospitalar.

Mesmo naquele sofrimento, ela viu médicos jogando conversa fora, atendentes irritados com pacientes que gemiam ("Mas a senhora não pode ir ao banheiro sozinha?", rosnou uma delas para uma idosa fraca e acamada) e com a deficiência estrutural do Crei; viu gente ensanguentada, inconsciente e também largada cujos curativos, já sujos, nem sequer eram mexidos por cidadãos que trabalham lá.

A única coisa que minha irmã se lembra de ter recebido foi uma aplicação de soro ou de analgésico -- e de forma incorreta, que lhe deixou um braço inchado. As coisas só começaram a se acertar quando uma ambulância da empresa com o qual ela mantém convênio médico chegou ao Crei e a levou ao hospital.

Por tudo isso, a cirurgia para colar seus ossos e recompor a veia rompida, que poderia ter sido feita ainda naquele sábado em que se machucou, acabou ocorrendo só no início da noite de quarta-feira: ela precisou de antibióticos para limpar o organismo e reduzir o risco de complicações na operação. Quatro dias sem poder nem mesmo se deitar de lado. Quatro dias quase sem dormir, de dor.

Serão uns dois meses até ela poder andar de novo e mais seis a dez meses com inchaços constantes na perna, como resultado da circulação sanguínea deficiente. Claro, tal recuperação se deve à seriedade da fratura. Mas as complicações anteriores à cirurgia e o nervosismo que toda a família passa num momento desses não teriam surgido se o sistema vicentino de saúde tivesse um mínimo de decência.

Os serviços públicos de uma cidade refletem o caráter de seus responsáveis. Os de saúde são básicos, podem definir a salvação ou o fim de uma vida. Assim estão terminando 16 anos de um governo de uma só corrente política e pessoal, num lamentável fim de feira que a população espera mudar.

Nada de ilusão. O novo grupo que está chegando tem muito do velho. Será uma luta longa e difícil.

Nenhum comentário: