quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Cidade da Carochinha (*)


(*) Título sugerido pelo colega jornalista Mário Jorge

Era uma vez uma linda jovenzinha de 18 anos recém-completados que andava sempre enfeitada com um chapeuzinho... cinza. Vermelho uma ova: é coisa de petista ou comunista. Como a cidade onde vivia ficou retrógrada depois da ditadura, perdeu muito da cor e do brilho. Estamos em 2034, 70 anos depois do Golpe, e continuamos nessa toada.

Mas Chapeuzinho Cinza – e assim a chamarei, coitada – tinha uma missão que lhe fora confiada por sua mãe. Precisava levar para sua avó uma cestinha de doces (feita com adoçante; era uma senhora cujo nível de glicose no sangue não era dos mais favoráveis).

Aí estava o problema, que não seria tão grande se a história se passasse na França, na Suécia ou no Ceará: Chapeuzinho morava na Ponta da Praia, em Santos; sua velha (desculpe, idosa; sejamos politicamente corretos) avozinha, na Área Continental de São Vicente.

– Vá e não demore, filhinha – disse Chapeuzona, a mãe, como se isso fosse possível.

– Sim, mamãe – respondeu Chapeuzinho, obviamente para não lhe causar preocupação.

A garota estacionou sua cestinha na calçada do ponto final de ônibus da Avenida Rei Alberto I. Foi quando, sorrateiramente, um bandido malandro-velhaco-sacripanta-safado-pústula se aproximou. Mas de forma educada: não queria dar na vista que era João Lobo, o malvado. E, afinal, iria lidar com uma moça. Claro que, nestes dias, isso já não faz a menor diferença, mas Lobo era marginal experiente (de novo, o politicamente correto).

– Para onde vai, minha querida? – indagou Lobo.

– Levar esta cesta de doces dietéticos para a vovó em outra cidade. Ela é diabética, sabe? Não pode exagerar – replicou, candidamente, Chapeuzinho.

– Por que você não toma o VLT? – sugeriu o ladrão, ao se referir ao Veículo Leve sobre Trilhos.

– O sr. não regula bem – rebateu a jovem, usando uma expressão do tempo de sua vovozinha – Não existe VLT por aqui. Faz 35 anos que prometem, e nada.

– Oh, perdão, como sou desatento. Perceba como estou desatualizado... A idade, talvez. Mas não há mal nisso: tome um ônibus até o Marapé e, de lá, atravesse o túnel entre as Zonas Leste e Noroeste para ir a São Vicente.

– Ih, moço... Que túnel? Não há passagem direta: só dando uma volta de quatro quilômetros para chegar do outro lado – observou a garota.

Lobo calou-se: ficara sem argumentos.

Tinham se passado trinta minutos. O ônibus não chegava, como acontecia já em 2011. O bandido se valeu da demora para retomar a conversa-mole:

– Menina: se o tal ônibus que você quer não chega, por que não toma duas conduções? O Bilhete Único Metropolitano permite pegar mais de um coletivo num determinado espaço de tempo, pagando só uma passagem, até que você chegue a seu destino.

– Agora vejo! O sr. quer me enganar. Fica contando velhas promessas do Governo do Estado com má intenção! Que coisas feias, as promessas vãs e seu estratagema – bradou Chapeuzinho, novamente usando termos da época da Carochinha.

– Ah, vê se não enche! Vá reclamar com o governo. E passa pra cá essa cesta!

Lobo foi embora. A pé, em direção à balsa. Desnorteada, Chapeuzinho correu rumo ao 3º Distrito Policial, quase defronte ao ponto de ônibus, e prestou depoimento ao delegado de plantão.

– Mas para que direção ele foi, moça? – perguntou o agente da lei.

– Para lá – apontou, trêmula, com o dedo – Deve ter seguido pela ponte Santos-Guarujá.

Chapeuzinho Cinza foi presa por falsa comunicação de crime. Não havia ponte alguma.

6 comentários:

Cidinha Santos disse...

Excelente crítica, Rafael!
Seria bom que "nossas" autoridades se dessem conta dos erros que cometem e, nós, eleitores, não permitíssemos que eles as repetissem.

mário jorge disse...

Boa, Rafa, somente você pra colocar no papel um enredo que realmente nos passa alguma coisa. Até porque, muitos põem tantas coisas no papel e estas lá ficam, eternamente, a ludibriarem cidadãos e cidadãs. Mas, nem tudo está quase perdido. Ainda bem que Chapélzinho Cinza não cismou de tomar um avião, aquele metropolitano, sabe...

Jonathan Pereira disse...

Adorei, Rafael! Pra ficar mais dramático, só se fosse um domingo, quando alguns ônibus levam mais de 1h para passar, e se depois de ir na casa da Vózinha na Área continental de SV, a Chapeuzinho tivesse que visitar uma tia que mora nos bairros Cota (que até 2034 ainda existirão). Tadinha...

Gustavo Miranda disse...

Rafa, texto sensacional. Há quase 10 anos, abandonei Santos e vim pra São Paulo. Todas as promessas continuam iguais. Daí que quando fui fazer um teste n'A Tribuna, em 2008, sugeri uma pauta sobre o Alegra Centro, que era um tema de quando eu era um mero estagiário no Diário do Litoral. Ainda tirei assunto dali... Ai, como eu me divirto. Muito bom ler suas reflexões. Um abraço!

Anônimo disse...

Pode crer...

Anônimo disse...

Rafael, gostei do seu texto. Crítico, atual e, de fato, coerente para com a história em seu contexto real associado à ficção. Parabéns!
Maurilio