quinta-feira, 26 de maio de 2011

Outro mundo. É possível?

Plaza Catalunya, Barcelona: união do antigo e do moderno

Eles sofrem com uma crise. E acham que estamos com tudo. Sim e não, para os dois lados. Enquanto Espanha e Portugal penam com uma crise econômica, o Brasil vê seu PIB crescer. Mas pouco avança no essencial: uma cultura pela qual o coletivo pertence a todos e, por isso, é preservado.

Andar por Barcelona, na Espanha, e pelo Porto, em Portugal, comprova isso. Nada surgiu ontem. Copiando um conceito de Nelson Rodrigues sobre o subdesenvolvimento, "é obra de séculos". O grau de civilização é tamanho que não deixa a crise transparecer. Ao menos, a quem vem de fora.

Estive nessas duas cidades em viagem a serviço pelo jornal A Tribuna, de Santos, acompanhando uma comitiva de políticos e empresários da construção civil. Foi uma semana (mais 24 horas em aviões) de poucas horas sem trabalho, mas suficientes para me impressionar com esse outro mundo. Possível?

Veja o pouco do que pude observar e imagine se, em sua cidade, dá para fazer algo parecido. E, se for o caso, pergunte-se: "Por que ainda não o fizemos?".

Usina de lixo em Barcelona
Coletores individuais no Porto











1. Limpeza urbana -- Não há sujeira nas ruas barcelonesas, que recebem 7 milhões de turistas por ano. Nas portuenses, quase nada. As ruas têm coletores individuais de lixo reciclável, em que os materiais são depositados separadamente. Em Barcelona, defronte ao Mar Mediterrâneo, onde se poderiam erguer prédios residenciais gigantescos e com vista inigualável, há uma usina com megaventiladores que sugam o lixo de casas e prédios e transformam material orgânico em eletricidade. Num shopping center ao Norte do Porto, todo coletor de resíduos tem quatro divisões: três para recicláveis, uma para o resto.


'Bicing', sistema barcelonês
Porto: bonde à beira-rio












2. Transporte público -- Barcelona tem uma rede de bicicletas públicas. O cidadão se cadastra na internet, retira um cartão magnético, passa o cartão num terminal e sai pedalando até outro terminal próximo de seu destino, onde deixa a bicicleta. Se faltam 'bikes' num ponto, um sensor avisa a central do serviço. Logo, um furgão chega para tirar bicicletas excedentes de um lugar e deixá-las em outro. No Porto, um cartão magnético assegura descontos de 50 cêntimos (0,50 euro) nos "transportes intermodais" (metrô, trem elétrico, ônibus, bonde), equivalentes a um terço da tarifa (€ 1,50). O salário mínimo português é de € 485 (R$ 1.115) e compra 323 passagens no Porto. No Brasil, de R$ 545, permite adquirir 206 viagens de ônibus de R$ 2,65, em Santos.


Aviso em catalão: um em
cada três mortos no
trânsito estava a pé
3. Trânsito -- As ruas das duas cidades são bem sinalizadas. Onde há semáforos e faixas para travessia, tudo se respeita. Onde não há, o pedestre é prioridade. Basta estar à beira da calçada, de costas para o fluxo, para que motoristas reduzam a velocidade (sobretudo em Barcelona). Quando alguém começa a atravessar, os carros param. Um exemplo: o Porto é cheio de subidas e descidas. Na avenida do hotel onde fiquei, havia uma ladeira com trânsito razoável. Um carro apareceu no alto da avenida. Sem cerimônia, um casal começou a cruzar a pista. "Vão morrer!", pensei. A condutora parou o veículo e, na dúvida, esperou alguns segundos para que eu também atravessasse. Passei...


Detalhe do Bairro
Gótico, em Barcelona
4. Preservação histórica -- Barcelona é uma das províncias da comunidade autônoma da Catalunha, região onde se fala espanhol, mas tem idioma próprio e usado no cotidiano: o catalão. Os jornais diários são impressos nas duas línguas. Há construções medievais em perfeito estado de conservação por toda a cidade (o Bairro Gótico, com prédios de 700 anos, é um belo exemplo). É comum ver prédios sendo restaurados. O Centro Histórico do Porto é classificado pela Unesco como Patrimônio Mundial. Há raríssimos edifícios deteriorados, e quase todos servem de moradia ou comércio. Defronte ao mar, prédios novos e antigos castelos misturam-se à paisagem, sem que se proíbam novas construções em volta.


Às margens do Rio Douro,
no Porto, séculos de História
5. Turismo -- A partir da segunda metade da década de 1980, logo que se anunciou a realização dos Jogos Olímpicos de 1992 na cidade, Barcelona deu início ao seu mais recente trabalho de recuperação urbana. São efeitos visíveis até hoje: por ano, passam por lá cerca de 7 milhões de turistas. Em 2008, o Brasil todo recebeu 5 milhões de viajantes estrangeiros. Qualquer quiosque tem lembranças com alusão a Barcelona (tanto ao município quanto ao time de futebol) e ao Templo Expiatório da Sagrada Família (Patrimônio Mundial pela Unesco; igreja desenhada pelo arquiteto catalão Antoni Gaudí e cuja construção deverá acabar em 2026, após 144 anos de obras). Sobre o Porto, onde se calcula haver 1 milhão de turistas anuais, reveja o item 4.


"Chega de mentiras!", exigem
comerciantes das Ramblas
6. Espírito de luta -- No Porto, nem tanto. Mas os catalães não deixam nada passar. No último domingo (22/5), houve eleições nacionais para as prefeituras. O governo nacional espanhol é administrado pelo PSOE, partido social-democrata de centro-esquerda. O descontentamento com a crise levou à vitória da direita em dois terços das cidades. Em Barcelona, optou-se por uma solução 'caseira': votou-se no prefeito da CiU (Convergència i Unió, ou Convergência e União), legenda de centro-direita cuja ideologia é o nacionalismo catalão. De resto, ninguém se cala. Tudo parece em ordem, mas barceloneses querem "bairros dignos" e comerciantes das famosas Ramblas (largas, compridas e movimentadíssimas passarelas), sob risco de serem desalojados pela prefeitura, promovem abaixo-assinados por sua permanência e exigem o fim das "mentiras" sobre seu futuro.

Detalhe do Forte de São João Baptista (Castelo da Foz de Douro), cuja construção começou em 1570 e terminou em 1647. Fica defronte ao mar

8 comentários:

Anônimo disse...

Rafinha, que observações boas....faltou falar sobre a coisa mais bonita do mundo. E as mulheres, como são? Guapas?
Conta aí, vai.
Abrasso!

Samuel Rodrigues disse...

Parece que só no Brasil o povo é tão acrítico. Em países com democracia tão consolidada, como a Espanha, e em especial em Barcelona, onde é sabido que as pessoas são, de fato, bastante politizadas, protesta-se por qualquer coisa (que valha a pena, claro). E é assim que as coisas devem ser. Sem pressão, não há mudança. Sob este ponto de vista da consciência política, estamos a anos-luz dos catalães.

Nando disse...

Sair do Brasil revolta mesmo, Rafa. Mas ñ perca a esperança. Coletores individuais de lixo já fazem parte da paisagem de algumas cidades do sul (prédios de Florianópolis já contavam com eles na década de 90), já vi biodigestor funcionando em acampamento do MST e, pasme, aqui em Natal é comum motoristas pararem nas faixas de pedestre.
Nosso única doença ainda incurável é o transporte público, porque a falta de um programa desenvolvimentista sério nos torna dependentes da indústria automobilística. Aí também somos a galinha dos ovos de ouro do mundo: as montadoras produzem e vendem muito e pagam pouco (a falida GM, por exemplo, tem aqui seu mercado mais lucrativo).

Anônimo disse...

Oi trata-se a 3ª vez que li o teu espaço online e adorei tanto!Espectacular Trabalho!
Adeus

Rafael Motta disse...

Anônimo, sou obrigado a lhe dar uma resposta em cima do muro: é difícil saber quem são as espanholas ou as portuguesas, devido à quantidade de estrangeiros. Em Barcelona, 17% da população nasceu em outros países.

Rafael Motta disse...

Sobre o transporte público, Nando, esqueci de me dizer que não vi nenhum SUV -- aqueles carrões que parecem caixas-fortes, são mais altos do que a gente e não cabem direito numa vaga de estacionamento. Lá, são comuns os carros híbridos (movidos a diesel e eletricidade). E as vias principais de lá são bem mais largas que as nossas. O que me faz concluir que alguns de nós temos uma besta e, aparentemente, insuperável mania de grandeza.

Bruno Rios disse...

Isso só me dá ainda mais vontade de conhecer Barcelona. Cidade organizada, politizada, enfim, um lugar muito bacana para se conhecer.

Kátia disse...

Rafael, ler suas matérias e opiniões tem feito parte do meu cotidiano. Desde a época que morei em Floripa (1995-2002)separo o lixo e aqui em Natal deposito nos poucos postos de coleta que existem, além de respeitar os pedestres nas nossas péssimas ruas e avenidas. Mas ainda há muito a fazer. Presenciar atitudes corretas de forma coletiva deve dar uma mistura de esperança e desânimo não é mesmo? Bem, por mais atrasados que a gente possa estar, ainda me agarro na esperança de conseguirmos evoluir. Belas fotos!! Parabéns pelo olhar minucioso e atento. Obrigada por compartilhar! Abraço.